NA IGREJA PRIMITIVA E PÓS-APOSTÓLICA
O
Culto cristão tem como fonte originária a herança do padrão de culto
vétero-testamentário, fornecido pelo ritual do Templo, e, sobretudo, a liturgia
da sinagoga. Assim sendo, o pano-de-fundo da adoração cristã primitiva deve ser
examinado nestas duas instituições judaicas. Vejamos alguns detalhes sobre
elas.
O CULTO SINAGOGAL
A palavra
“sinagoga” é uma palavra grega que significa trazer com, ou seja, assembleia.
O termo aparece 57 vezes no Novo Testamento apresentando sempre essa mesma
ideia.
Provavelmente,
as sinagogas foram originadas no cativeiro babilônico em substituição ao Templo
de Jerusalém, uma vez que o povo judeu não tinha mais acesso a tal lugar de
adoração. Nesse período a sinagoga tornou-se parte da vida religiosa entre os
judeus exiladas.
OS ELEMENTOS DE CULTO SINAGOGAL(1)
a)
Louvor:
O culto era aberto com uma nota de louvor. O presidente convoca o assistente a
convidar alguém da congregação para começar o culto com a “chamada ao louvor”.
Começa, então, exclamando: “Bendizei ao
Senhor, Aquele que deve ser bendito” e o povo responde com a bênção: “Bendito seja o Senhor... para sempre”.
Esse princípio inicial de culto é preconizado, também, pelo Talmude quando diz:
“O homem deve sempre proferir louvores em primeiro lugar, e então orar”.
b)
Oração:
Há dois tipos de oração no culto sinagogal:
(i)
O primeiro tipo consiste em duas declarações
muito belas, a Yotzer (“Aquele que
forma”). Essa oração exala a Deus como Criador e sustentador de todas as
coisas. A outra é chamada de Ahabar
(“amor”). Essa se ocupa em rememorar o amor divino, expressando as promessas de
Deus em relação ao seu povo.
(ii)
O segundo tipo é a oração das Dezoito
Bênçãos. Os ministros conclamam um membro da assembleia para dirigi-la. O homem
nomeado vai para frente, e dirige as intercessões uníssonas da congregação que
responde dizendo: “Amém”. As Dezoito Bênçãos abrangem uma ampla gama de temas:
expressão de louvor, petições por benefícios espirituais e materiais, súplicas
pelos necessitados, em favor dos juízes e conselheiros e para o povo da
Aliança.
c)
Instrução:
Os próprios judeus se referiam a sinagoga como “a casa da instrução”, pois não
há nada que seja mais de acordo com a adoração judaica do que a ênfase que é
dada à leitura e exposição das Escrituras. Além disso, a sinagoga era usada,
casualmente, como escola religiosa para as crianças.
LÍDERES DA SINAGOGA(2)
Os
líderes eram:
a)
Os Chefes (Lc. 8.49; 13.14; At. 18. 8,7). Eram
os responsáveis pelo arranjo dos cultos e pela execução da autoridade na
comunidade.
b)
Os Presbíteros (“Anciãos”, Lc 7.3; Mc. 5.22; At.
13.15). Formavam um concílio sob a autoridade dos “chefes”.
c)
Legatus
ou Ângelus Eclesiae. Operava como
leitor das orações e como mensageiro.
d)
Assistente (Lc. 4. 20). Preparava e cuidava dos
livros, limpeza da sinagoga, fechava e abria suas portas, etc.
Esses são, portanto, os aspectos principais do culto da sinagoga. Mas,
qual a contribuição do Culto do Templo na formação da adoração cristã?
O CULTO DO TEMPLO
O Templo
sempre teve uma profunda importância na vida do povo hebreu. A começar pelo
tabernáculo. O tabernáculo foi erguido no deserto, e a proposta do tabernáculo
era estabelecer um relacionamento íntimo, pessoal entre Deus e o seu povo. Deus
estaria para sempre habitando com o seu povo, e estaria de forma vívida no
santuário. A sua glória estava, mais precisamente, no Santo dos Santos.
Depois
que Israel se organizou como nação, possuindo uma terra, houve a necessidade de
um Templo fixo em Jerusalém. O Templo foi construído sob o reinado de Salomão,
o filho de Davi.
O
que nos interessa é a estrutura litúrgica do Culto do Templo.
a) O
povo era chamado para comparecer perante um Deus Santo (Ex. 35.11).
b) O
povo era convidado para santificar-se pelo oferecimento de ofertas, que eram:
ofertas queimadas, ofertas de manjares, sábado semanal, ofertas de ações de
graças, ofertas pelos pecados, ofertas pelas transgressões e ofensas.
c) O
povo era convidado a tomar uma atitude de consagração e santificação.
Em todo esse
ritualismo das cerimônias dos hebreus encontramos estas partes:
a)
Visão da santidade de Deus (Is. 6.3);
b)
Visão do pecado do homem (Is. 6.5);
c)
A necessidade de perdão de pecados (Is. 6.7);
d)
Sentimento de gratidão diante de um Deus
gracioso (Is. 6.8);
e)
Consagração pessoal (Is. 6.8).
O ritual do
tempo era simbólico: apontava para um alvo superior. Daí surge a necessidade
dos sacrifícios e holocaustos.
O CULTO CRISTÃO NO NOVO TESTAMENTO
Com base nos
aspectos do culto sinagogal e do culto do Templo, podemos afirmar que a
adoração neo-testamentária nasceu da confluência dessas duas formas de
adoração. O que faltava no culto sinagogal era o sacrifício postulado no culto
templário. Assim sendo, o culto primitivo é o culto sinagogal com a presença
cristológica na sua liturgia. Evidentemente, não havendo mais a necessidade de
sacrifício de animais, pois no culto cristão o sacrifício de Cristo na cruz foi claramente compreendido. A
liturgia do culto cristão, depois dessa união, estabeleceu-se com os seguintes
elementos:
a)
Leitura das Escrituras (I Tm. 4. 13; Col. 4.
16);
b)
A homilia – exposição da Palavra (At. 20.7);
c)
Confissão de Fé (I Tm. 6. 12; At. 8. 37);
d)
Cânticos (Col. 3. 16);
e)
Amém Congregacional (I Co 14. 5,6);
f)
Ofertas (I Co 16. 1-2).
O CULTO CRISTÃO PÓS-APOSTÓLICO
Para
analisar o período do culto cristão pós-apostólico é necessário recorrer a
literatura extrabíblica, pois, a época estudada refere-se ao período de II até
o V século da era cristã.
No
Didaquê, Ensino dos Apóstolos(3), é encontrada uma descrição da época
pós-apostólica: “Reúnam-se no dia do Senhor para partir o pão e agradecer,
depois de ter confessado os pecados, para que o sacrifício de vocês seja
puro”(4).
A
mais antiga indicação que temos de uma liturgia cristã completa nos vem de Justino,
o Mártir, ao que parece uma descrição da liturgia de Roma, mais ou menos no ano
150 d.C., dirigida ao imperador Antônio Pio e seus filhos adotivos, defendendo
o cristianismo contra a perseguição governamental e as críticas pagãs. Assim
descreve o culto cristão:
“No dia denominado de dia de sol há uma
reunião de todos aqueles que vivem tanto nas cidades como no campo. Ali se dá a
memória dos apóstolos ou das Escrituras dos profetas até onde o tempo permite.
Terminada a leitura, o presidente faz uso da palavra para nos admoestar e nos
exortar a imitação e prática dessas coisas admiráveis. Logo nos levantamos e
oramos juntos. Terminada a oração, do modo como já foi dito, traz o pão e vinho
com água. O presidente dirige a Deus orações e ações de graças, o povo aquiesce
com a aclamação: Amém. E se procede a distribuição dos elementos eucarísticos
entre todos, enviando-se, também, mediante diáconos, aos que estão
ausentes.”(5)
Há algumas coisas nessa liturgia que são dignas de observação. Pode ter
havido elementos menores no serviço que Justino deixou de mencionar: “Talvez a
coisa mais importante para se notar é que o serviço tinha duas partes
principais: o serviço da Palavra, consistindo da leitura da palavra e de um
sermão; e o serviço da eucarístia, com as orações intercessórias formando uma
ponte entre as duas partes”.(6)
Infelizmente constatamos que já nos séculos II e III havia uma
penetração pagã advinda das religiões de mistério. Justino, em sua aludida
obra, constata que a Santa ceia já tinha sido copiada pelos pagãos.
Gradativamente notamos uma degenerescência no culto cristão ao longo
dos tempos. O historiador Williston Walker, escreve:
O culto público nos séculos IV e V
estava inteiramente sujeito a influência do conceito de disciplina secreta, a assim
chamada disciplina arcani, provavelmente originária de concepções semelhantes
às religiões de mistério, ou delas
provenientes. Suas raízes remontam ao que parece, ao século III. Sob a
influência de tais fatores, os ofícios dividiam-se em duas partes. A primeira era franqueada aos catecúmenos e ao
público em geral, incluindo leitura da Escritura, cânticos, o sermão e a
oração. À segunda, o verdadeiro mistério cristão, só eram admitidos os
batizados. Seu ápice era a ceia do Senhor, mas o credo e a oração dominical
eram também reservados aos iniciados por meio do batismo. A disciplina secreta terminou com o
desaparecimento do catecumenato, no século IV, partido do pressuposto de que a
população era agora cristã. A parte pública da adoração dominical iniciava-se
com a leitura da Escritura, entremeada do cântico dos Salmos. Essas seleções apresentavam três passagens:
os profetas, isto é, o Antigo Testamento; as epístolas e os evangelhos. Eram
escolhidos de forma tal que no curso de domingos sucessivos se abrangesse a
Bíblia inteira. No fim do século IV, começaram a ser elaborados os lecionários,
reclamados pela conveniência de ler seleções apropriadas a estações
especiais e de abreviar certas
passagens. Durante a luta ariana, tornou-se comum o uso de hinos outros que não
os salmos, prática que, no Ocidente, foi disseminada com grande sucesso por
Ambrósio de Milão. A última parte do século IV e a primeira metade do V foi,
mais que quaisquer outras, a era dos grande pregadores da Igreja Antiga. Entre
o mais eminente contavam-se Gregário de Nazianzo, Crisóstomo e Cirilo de
Alexandre, no oriente; Ambrósio, Agostinho e Leão I, no ocidente. A pregação
era, em sua maior parte, de caráter expositivo, embora acrescida de aplicações
simples aos problemas da vida cotidiana. Sua forma não raro altamente retórica,
e os ouvintes manifestavam sua aprovação por meio de aplausos.(7)
A partir do IV
século há uma profunda corrupção na natureza do culto. Com a morte dos
mártires, os novos convertidos tendiam a transferir parte da reverência cúltica
a poderes miraculosos que atribuíam aos apóstolos e aos próprios mártires. As
tumbas se tornaram locais de peregrinações.(8)
Abriu-se, então, a
porta para as heresias que foram sacralizadas na idade média. A virgem Maria,
segunda Eva, como entendia Irineu, passou a ocupar um lugar de mediação entre
Deus e o homem. Surgiu a adoração a anjos (Constantino construiu um templo em
homenagem ao arcanjo Miguel).(9)
No fim do século V
já não existia mais um culto com a simplicidade apostólica na sua liturgia, um
culto puro.
Rev. Naziaseno Cordeiro Torres
(1) Ralph P. Martin, Adoração na Igreja Primitiva, p. 29;
(2) Normam Champlin, Enciclopédia de Bíblia, Filosofia e Teologia, p. 283;
(3) Didaquê significa "Instrução". Trata-se de um documento no fim do séc. I;
(4) XIV - Da Celebração Donical, p. 27;
(5) Justino, Apologia, I, 66;
(6) Nicholas Wolterstorff, Grandes Temas da Tradição Reformada, p. 238, ed, Pendão Real;
(7) Williston, Walker. História da Igreja Cristã, p. 220.
(8) Nichols, Robert Hastings, História da Igreja Cristã, p. 57
(9) Ibid, p. 57.
Próxima parte: O Culto na Idade
Média
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