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terça-feira, 18 de outubro de 2016

SOMOS TODOS PURITANOS!

Puritanos, Assembléia de Wstminster, Confessionalidade
Na hora do almoço, em conversa com um amigo presbítero, receoso ele me questionou: “Você é puritano? ” Essa pergunta, inesperada, me fez mastigar um pouquinho mais, enquanto matutava uma rápida resposta. Uma sinalização afirmativa me colocaria numa situação embaraçosa diante do meu interlocutor; porém, uma resposta negativa me colocaria em falta com a minha própria consciência diante de compromissos firmados em dado momento histórico da minha vida ministerial. Bom, vamos lá!

Tecnicamente, não sou puritano. Por quê? Vejamos. Primeiro, porque nasci em 1973 na cidade de Garanhuns, Pernambuco. Em contrapartida, o movimento puritano situa-se no tempo e no espaço próprios.  

No tempo! O puritanismo durou de 1560 até o início dos anos 1700. Portanto, um espaço temporal de cento e quarenta anos.  Iniciada por João Calvino a reflexão teológica reformada alcança seu ápice e maturidade nesse período de tempo.

No espaço! O movimento puritano se formou na Inglaterra. Suas raízes foram fomentadas pelas aventuras amorosas do Rei Henrique VIII (1491-1547). Esse desejava se divorciar de sua esposa, mas temia ser excomungado, então, ele mesmo, se declarou e se estabeleceu a si mesmo como o cabeça supremo da Igreja da Inglaterra. Esse monarca não desafiou Roma movido por paixão por uma outra mulher, mas porque queria um herdeiro masculino para o seu trono. Entretanto, teologicamente poucas coisas mudaram, promoveu uma reforma branda enquanto a sua alma continuava essencialmente católica. Com o nascimento do seu filho, Edward VI (1547-1553) a Fé Protestante teve um forte impulso na Inglaterra. O arcebisbo Thomas Cranmer foi uma figura central durante o seu reinado por meio de suas Homilias, do Livro Comum de Oração e dos Quarenta e Dois Artigos da Religião. Mas, na sucessão do trono, tudo mudou de forma radical. Assume Maria(Mary) Tudor (1553-1558).  Seus atos: restabeleceu a missa em latim na Inglaterra; reforçou a aliança com Roma; e perseguiu de forma cruel os protestantes matando quase trezentos protestantes, incluindo o Arcebisno Cranmer. Segue a linha sucessória, e ascende ao trono Elizabeth (1533-1603). Os protestantes nutriam esperança do restabelecimento das ações engendradas por Edward VI, porém as expectativas foram frustradas. A perseguição continuava e as vozes dissidentes eram silenciadas sob o reflexo ameaçador da espada. Nesse contexto os brios reformados se inflamaram, e os protestantes começaram a exigir uma reforma mais robusta no Culto, na piedade (vida), na política e na cultura. A partir daí, os algozes da fé protestante começaram a chamar injuriosamente os dissidentes de Puritanos!
ASSIM SENDO, TECNICAMENTE FALANDO, NÃO SOU PURITANOS, POIS O TEMPO E O ESPAÇO ME DISTANCIAM DESSE MOVIMENTO RELIGIOSO.

Porém, sou puritano no sentido de partilhar e subscrever suas crenças e compromissos com a Palavra de Deus. Aliás, sendo ministro presbiteriano, não tenho como não me identificar com os puritanos em atos e fé! Seria um impostor, falso, hipócrita, rebelde e mentiroso se em resposta à pergunta “Você é puritano? ”; respondesse, “Não”.   Tal postura me nivelaria a Judas ao trair o Filho de Deus pelos louros desse mundo; ou, ainda, a Pedro ao negar Jesus por covardia e medo. Veja...

Em 20 de dezembro de 2001, no Templo da Igreja Presbiteriana de Aracaju, fiz o seguinte voto: “Recebo e adoto sinceramente a Confissão de Fé e os Catecismos desta Igreja, como fiel exposição do sistema de doutrina, ensinado nas Santas Escrituras”.  Esse juramento me liga irremediavelmente aos pais puritanos.  Nesse sentido, sou puritano! Aliás, pergunto, teria como não o ser? Explico melhor...

A Confissão de Fé e os Catecismos acima descritos, trata-se dos documentos confessionais de Westminster. No século 17 nossa forma teológica de pensar foi solenemente exposta e escrita em uma Confissão de Fé e dois Catecismos: um maior e outro menor. Isso se deu na Assembleia de Westminster, composta de 121 dos mais capazes pastores da Inglaterra.  Longos e acalorados debates que se realizaram na Abadia de Westminster, em Londres, a partir de 1º de julho de 1643. Os trabalhos se estenderam por cinco anos e meio, durante os quais houve mais de mil reuniões do plenário e centenas de reuniões de comissões e subcomissões.  Até hoje os documentos extraídos dessa Assembleia constituem os nossos símbolos de fé! Por isso, somos uma Igreja Confessional – os presbiterianos espalhados em todo o mundo têm uma doutrina comum, na qual juram lealdade e subscrevem-nas!

Então, concluindo, SOMOS TODOS PURITANOS! É exatamente isso que a nossa própria história requer de nós. Quando alguém maldosamente, movida pelos seus preconceitos, nos chama de puritano devemos nos conscientizar de duas cousas: A total ignorância histórica do nosso interlocutor e, também, devemos nos alegrar pois inconscientemente nossos acusadores nos colocam em harmonia com o pensamento histórico dos nossos pais do passado, e, ambos de joelhos, em submissão às Escrituras Sagradas.


SIM SOU PURITANO! SOMOS TODOS PURITANOS! 

terça-feira, 5 de abril de 2016

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

DESAFIOS ATUAIS PARA O CULTO CRISTÃO REFORMADO (I)


 EXISTENCIALISMO – ÊNFASES ÀS EMOÇÕES

Cremos que o ser humano foi criado para refletir emoções, e é legítimo expressá-las. A verdadeira religião afeta tanto os sentimentos quanto o intelecto. Citando Richard Baxter, ela é essencialmente o “trabalho do coração”. O sumsum corda, isto é a elevação do coração, tem sua vez no culto cristão. Entretanto, quando a ênfase é voltada para os sentimentos, em detrimento da razão, o culto perde o seu equilíbrio.

            O Existencialismo é uma filosofia que consiste, basicamente, na ênfase da experiência antes da razão.

            Essa filosofia entrou na religião protestante pelo pensamento de Friedrich Schleiermacher.(1) Ele foi o pioneiro para a reconstrução da teologia por meio de uma base filosófica.  Para  Schleiermacher a religião fala essencialmente ao sentimento. Assim sendo, “ a localização da fé já não se acha naquilo que Deus diz (a revelação divina), nem naquilo que Deus faz (a redenção na história), mas primariamente naquilo que o homem experimenta”.(2) Partindo deste princípio ele postulou que:


a)      O centro gravitacional da religião se acha na experiência cristã e não nos atos de Deus na história;

b)      A essência de toda a religião, inclusive o cristianismo, é a experiência;

c)      Sua sede não é a razão, a consciência, a vontade, mas o sentimento.

d)     O papel da pregação no culto é criar mudança dentro de nós através dos sentimentos.

 

Mas, seria as emoções perigosas para a adoração cristã? Em que aspecto ela é um desafio para o culto reformado? Qual a definição de emoções? 


“Uma emoção é qualquer manifestação ou perturbação forte da mente consciente normal ou da mente inconsciente; geralmente de forma voluntária, conduzindo, muitas vezes, a complexas alterações no corpo e nas formas externas de conduta.”(3)


Pelo termo latino emovere, significando agita, notamos que uma emoção é algo que nos desvia de um estado sereno – fora da racionalidade.


            É claramente comprovado que as emoções exercem um poder sobre o indivíduo. Elas podem levar para um bom caminho ou para o mal caminho. Pelas emoções pessoas são manipuladas. Por isso as emoções são um forte instrumento usado por políticos, artistas, professores e evangelistas.

            É fato comum, em muitas arraias evangélicos, encontramos forte apelo às emoções no culto público, principalmente no sermão e nas músicas. O sermão pode ser muito emocional, mas não ter conteúdo real, de modo que não terá efeito duradouro sobre a congregação. Em relação aos louvores cantados,

Os evangelistas devem olhar com cuidado a sua música. A música é a maneira chave de expressar emoções no culto. Mas o culto contemporâneo por várias vezes demais se preocupa apenas com a emoção de alegria – e esta de modo bem superficial... A música do culto da Igreja deve seguir o modelo do hinário no qual se louva a natureza de Deus e suas grandes obras. Tal louvor não é composto de repetição de frases ou de má poesia. É louvor verbalmente rico, emotivamente variado, cheio de conteúdo. É o tipo de louvor que encherá a mente e o coração do povo de Deus com a verdade de Deus, com amor para com Deus como ele realmente é. Abastecerá a mente com verdades sobre as quais meditar. Incentivará o povo de Deus à santidade de vida.(4)

                No culto as manifestações emocionais têm caracterizado a liturgia de muitas comunidades evangélicas. Com o advento do pentecostalismo e, mais recentemente, neo-pentecostalismo, a ênfase se voltou para o aspecto subjetivo da adoração. E isso tem levado o adorador ao êxtase.

            É bem verdade que na história dos avivamentos, mesmo onde a palavra de Deus era fielmente exposta, fortes ênfases emocionais eram evidenciadas. Havia manifestações ou fenômenos físicos no culto, principalmente na hora da pregação. Prostrações físicas, gritos, desmaios, etc, foram detectados em muitos lugares, tanto na Europa como na América.

            O livro “Tratado Sobre Afeições Religiosas” de Jonathan Edwrads, foi uma tentativa para responder às objeções e corrigir os abusos levantados contra tais fenômenos emocionais. O relato mais espantoso de tais acontecimentos foi feito pelo próprio Edwards ao comentar as experiências do reavivamento em Northampton em 1741, diz ele:

Os meses de agosto e setembro foram os mais notáveis deste ano, por causa o surgimento de convicção de pecado, conversões de pecadores, grandes vivificações, despertamentos... Era frequente ser ver uma casa cheio de gritos, desmaios, convulsões e coisas semelhantes, ora com tristeza, ora com admiração e alegria. Não era costume aqui se realizar reuniões a noite inteira, conforme se faziam em alguns lugares, nem estendê-las até muito tarde da noite; no entanto, ocasionalmente algumas pessoas foram afetadas sobremaneira e seus corpos dominados de tal modo que não puderam ir para casa, sendo então obrigados a ficar a noite inteira na casa em que se encontravam.(5)

Movido por desconfiança alguns pregadores não aceitaram tais manifestações emocionais legítimas. George Whitefield teve alguma dificuldade para aceitar tais fenômenos como obra do Espírito Santo. John Wesley o repreendeu por censurar a soberania de Deus e o poder do Espírito Santo. Wesley fez uma observação em seu Jornal do dia 17 de julho de 1739, com o seguinte teor:

Eu tive a oportunidade de falar com ele (Whitefield) a respeito dos sinais externos que tão frequentemente acompanharam o trabalho interno de Deus. Descobri que as objeções dele se baseavam principalmente em interpretações errôneas e exageradas dos fatos. Mas no dia seguinte ele teve a oportunidade de informa-se melhor, pois logo depois de começar (na aplicação do sermão) e convidar a todos os pecadores a crerem em Cristo, quatro pessoas caíram perto dele quase no mesmo instante. Um deles permaneceu imóvel e inconsciente; um segundo tremia excessivamente; o terceiro teve fortes convulsões em todo o corpo, mas não fez barulho, a não ser gemido; o quarto, igualmente em convulsão, clamava a Deus com forte choro e lágrimas. Daqui em diante, espero que todos nós permitamos que Deus continue sua própria obra de maneira que lhe aprouver.(6) 

É claro que houve manifestações espúrias e falsas. Por isso, nem todos os líderes ficaram empolgado com tais ocorrências. Muitos, sob a influência do racionalismo, ressentiam-se com o entusiasmo religioso gerado pelo avivamento. Eles achavam que tais manifestações emocionais eram uma ameaça à autoridade eclesiástica. Eles “entendiam que o subjetivismo religioso apelava aos instintos inferiores e que uma pessoa racional não necessitaria que as suas crenças fossem substanciadas por um coração aquecido e muito menos por desmaios, gemidos ou pulos de alegria”.(7) Assim sendo, surgiram dois partidos: os pastores contrários ao avivamento com a ênfase nas emoções, os Old Lights; e os New Lights, favoráveis ao movimento.(8)

Jonathan Edwards, na intenção de apontar critérios de julgamentos sobre a verdadeira obra do Espírito Santo, argumenta que “a verdadeira religiosidade reside no coração, a sede dos afetos, emoções e inclinações. Ao mesmo tempo, ele descreve com detalhes os tipos de emoções religiosas que são em grande parte irrelevantes para qualquer aferição de uma verdadeira espiritualidade”.(9) Em sua obra clássica, o “Tratado Sobre as Afeições Religiosas” produzido em 1746, Edwards destaca 12 marcas distintivas que apresenta a presença da verdadeira religião, entre essas destaco:  1) a ênfase na obra graciosa de Deus; 2) doutrinas consistentes com a revelação bíblica e 3) uma vida caracterizada pelos frutos do Espírito Santo.

Concluo esse artigo firmando que não há problemas em exercemos as nossas emoções no culto público (seria impossível para um adorador sincero), entretanto quando forjamos uma liturgia que apela tão somente para as emoções corremos o risco de manipularmos o auditório. Manter um equilíbrio é o desafio para o culto reformado. É justamente esse o conselho do apóstolo Paulo quando escreve aos coríntios: “Que farei, pois? Orarei com o espírito, mas também orarei com a mente; cantarei com o espírito, mas também cantarei com a mente” (1 Coríntios 14.15).


 Rev. Naziaseno Cordeiro Torres

(1) Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (Breslau, 21 de novembro de 1768  Berlim, 12 de fevereiro de 1834) foi pregador em Berlim na Igreja da Trindade e professor de Filosofia.
(2) Teologia Contemporânea, Gundry.
(3) Champlin. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia.
(4) James Boice, Reforma Hoje, Ed. Cultura Cristã
(5) E. Evans, Reavivamento, p. 24.
(6) Ibid, 25.
(7) Alderi Souza de Matos, “Jonathan Edwrds: Teólogo do Coração e do Intelecto”, Fides Reformata, Vol. III, nº I, jan-jul/1998, p. 77  
(8) Ibid
(9) Ibid

PRÓXIMO ARTIGO:
DESAFIOS ATUAIS PARA O CULTO CRISTÃO REFORMADO  (II) – HUMANISMO: ÊNFASE NO ENTRETENIMENTO


terça-feira, 20 de outubro de 2015

O CULTO NA HISTÓRIA DA IGREJA (IV)

Culto Puritano
O CULTO NA ERA DOS PÓS-REFORMADORES ("PURITANOS")

            As gerações seguintes à Reforma trouxeram um forte movimento anti-ritualista engendrado pelos cognominados “Puritanos”.  Mas, quem eram os puritanos? Quais eram os seus questionamentos e o que eles reivindicaram? Esses indivíduos “eram homens de moral severa, muito firmes em suas convicções e grandes estudiosos da Bíblia. Na teologia, seguiam João Calvino”.(1) Suas principais reclamações era destinadas à permanência na liturgia do ritualismo e das vestes clericais que lhes soavam como herança da igreja romana. “Eles se opunham à guarda dos dias santos, à absolvição clerical, ao sinal da cruz, à presença do padrinho no batismo, ao ajoelhar-se na hora da ceia e ao uso da sobrepeliz pelos ministros. Deploravam eles, também, a inobservância do domingo pelos anglicanos”.(2) Se procurarmos uma só palavra para conceituar a ideia puritana de culto, a expressão mais apropriada seria: SIMPLICIDADE – “Aqui está a essência do culto puritano: simples, claro, iluminado, desconfiados de ritual e distração humana construído ao redor da pregação da Palavra”.(3)
           
              A reivindicação maior dos puritanos era uma estreita subordinação à Palavra de Deus em se tratando do culto e da forma de governo.


RETORNO AO PRINCÍPIO REGULADOR DO CULTO

            A Igreja da Inglaterra (Anglicanismo) seguiu a regra formulada por Lutero que consistia em permitir a continuação das tradições que não fossem contrárias à Bíblia Sagrada e que pareciam úteis. Isso está refletido no Livro de Oração Comum (1552) do rei Eduardo, instituído pelo Ato de Uniformidade.  Os puritanos foram contrários ao princípio exposto no Livro de Oração, e seguiram o pensamento de João Calvino, que afirmava não admitir coisa alguma que não estivesse diretamente prescrita nas Escrituras. Esse princípio regulador de culto público, para sermos justos, não foi uma invenção puritano do período Isabelino. Na realidade eles estavam, apenas, dando continuidade a ideia dos reformadores antecessores. Historicamente, percebemos tal princípio na teologia de William Tyndale (1494-1536), divergindo com Thomas Cranmer (1489-1556). Cranmer aceitava as Escrituras como a única autoridade em matéria de fé, contudo não aceitou que a Igreja fosse limitada em suas cerimônias, práticas e governo, apenas à Bíblia. Em contrapartida Tyndale exigiu que, não apenas o credo da Igreja, mas também sua organização e culto deveriam ter base Escriturística. Há referências, também, em torno da controvérsia sobre o princípio regulador do culto entre John Hooper e Nicholas Ridley, em 1550; e entre John Konx e Thomas Kraumer em 1522-1553. As duas coisas particularmente em debate eram o uso de vestimentas e rubricas ou títulos de capítulos no segundo Livro de Orações da Igreja Anglicana exigindo a postura de joelhos na eucaristia. Hooper e Knox questionaram tal prática, pois afirmavam que não havia nada que validasse biblicamente tal uso.
            
         Nessa mesma linha de pensamento, os puritanos questionaram a adoração da Igreja da Inglaterra. Eles entendiam que muitos “trapos do papado” continuavam na Igreja da Inglaterra e queriam purificá-la com base na Bíblia Sagrada. Eles exigiam uma liturgia pura.(4)
           

EXAGEROS? TALVEZ, EXCESSO DE ZELO

Os puritanos levaram muito à sério o princípio que regulava o culto. Para alguns estudiosos eles, talvez, tenham ido longe demais na aplicação desse princípio. O reformador João Calvino, apesar de achar que existia multas tolerabiles ineptios (“muitas toleráveis insensatez”) no Livro Comum de Oração da Igreja Anglicana, ele as tolerava (sabemos que Calvino não apenas permitia, mas também usava a famosa toga genebrina – ainda em uso em algumas Igrejas Presbiterianas no Brasil).  Os puritanos, por sua vez, diferentemente de Calvino, não toleravam as partes insensatas do Livro Comum de Oração, e insistiram que todas as cerimônias deveriam ter apoio bíblico direto, ou seriam intromissões ímpias. Sobre esse princípio puritano, diz James Packer: “A ideia de que uma base bíblica, sob a forma de preceito ou precedente, é exigida para sancionar cada item essencial incluída na adoração pública a deus foi, na realidade, uma inovação puritana que se cristalizou no curso dos prolongados debates que se seguiram ao acordo elisabetano”.(5)
           
         Com a intenção de apresentar evidências bíblicas para provar a relevância do princípio regulador no culto, os puritanos apresentaram argumentos curiosos, por exemplo:

  • Com base em Números 28. 9-10  (“No dia de sábado, oferecerás dois cordeiros de um ano, sem defeito, e duas décimas de um efa de flor de farinha, amassada com azeite, em oferta de manjares, e a sua libação; é holocausto de cada sábado, além do holocausto contínuo e a sua libação”) - comprovava-se que dois cultos eram obrigatórios aos domingos;
  • Com base em Romanos 8.26 (“Também o Espírito, semelhantemente, nos assiste em nossa fraqueza; porque não sabemos orar como convém, mas o mesmo Espírito intercede por nós sobremaneira, com gemidos inexprimíveis.) – a prova que formalidades litúrgicas são ilegítimas;
  • Com base em Atos 1.15 (“Naqueles dias, levantou-se Pedro no meio dos irmãos (ora, compunha-se a assembléia de umas cento e vinte pessoas) e disse...”) – comprova-se que o ministro deve permanecer em um só lugar durante o culto;


Em relação a essas “provas” bíblicas o dr. Douglas Kelly se expressa assim: “Apesar de ter uma tremenda admiração pelos puritanos, eu acho que nesse ponto eles foram um pouco simplistas, e acredito que eles não foram capazes de biblicamente defender esta posição”.(6)


JOHN OWER, ESSÊNCIA DO PENSAMENTO PURITANO

John Ower (1618-1683), o teólogo puritano mais eminente, escreveu um tratado que reflete muito bem a visão puritana sobre o que é e o que não é lícito no culto público, diz ele: “... a invenção arbitrária de qualquer coisa imposta como necessária e indispensável no culto pública a Deus, como parte desse culto, e o uso de qualquer coisa assim inventada e ordenada no culto é ilegal e contrária à regra da palavra de Deus... Portanto, todo o agir  da Igreja com relação ao culto a Deus, parece consistir na  precisa observação daquilo que é prescrito e ordenado por Ele.”(7)


OS PURITANOS E A CONFESSIONALIDADE ESCRITURADA

Estamos recapitulando uma fase muito rica e significativa para a fé reformada. Nesse período da história foi constituída a Assembleia de Westminster, elaborada pelos puritanos. Esta elaborou uma forma de governo, uma confissão de fé, catecismos, um saltério e um diretório para o culto público.

A intenção de formular um diretório de culto era para substituir o Livro de Oração Comum, e seria estabelecido na Inglaterra, Escócia e Irlanda. O Diretório não tinha o interesse de ser um manual de culto, antes era um guia que servia para auxiliar o pastor de uma igreja local. Logo no início constava uma ordem parlamentar – “Uma ordem do Parlamento para a retirada do Livro de Oração Comum e para o estabelecimento e efetivação do diretório para o culto público a Deus”.(8)

O Diretório sugere uma ordem de culto que não é muito diferente da de Calvino em Genebra, porém mais enxuta para ressaltar a simplicidade da adoração pública.


LITURGIA PURITANA

·         Oração
·         Leitura Pública das Sagradas Escrituras
·         Cântico do Saltério
·         Oração
·         Pregação da Palavra
·         Oração (Ensinada por Cisto)
·         Cântico do Salmo
·         Bênção

Quando havia a Ceia do Senhor, logo após o canto do Salmo final, antes da Bênção, continuava o serviço litúrgico com a seguinte ordem:
·         Exortação, Recomendação e Convite à Mesa do senhor
·         Consagração e Bênção para os elementos
·         Palavra da Instituição ( 2 Corintios 11. 23-27)
·         Oração de Ação de Graças
·         Participação e Entrega do Pão e Vinho
·         Lembrança da Graça de Deus manifestada através dos sacramentos
·         Ação de Graças
·         Coleta em favor dos pobres


“É marcante nesta liturgia o lugar concedido à leitura da palavra, exposição e pregação da Palavra de Deus. O Diretório contém uma parte excelente dedicada à arte da pregação, defendendo o estilo simples e direto dos puritanos, que insistiam na comunicação da mensagem da Escritura”.(9)

Os teólogos ingleses do século XVII deixaram para nós um profundo legado: zelo no culto dirigido a Deus e simplicidade na maneira de cultuar.


Rev. Naziaseno Cordeiro Torres,VDM

(1) Nichols, Robert H. História da Igreja Cristã, p. 178
(2) Cairns, Earle E. O Cristianismos Através dos Séculos, p. 273
(3) Rykens, Leland. Santos no Mundo, p. 120
(4) Com o passar dos anos, sob a influência de Thomas Cartwright (1535-1603), professor de teologia em Cambrandge, por volta de 1470, deslocou-se a ênfase na reforma litúrgica para o campo da teologia eclesiologia. Em suas aulas sobre o livro de Atos, Cartwright se opunha ao sistema episcopal.
(5) Packer, James I. Entre os Gigantes de Deus, p. 267
(6) Revista os Puritanos
(7) Citado por Paulo Anglada em O Princípio Regulador do Culto, p. 17
(8) John Leith, A Tradição Reformada, p. 306
(9) Idem, p. 307


PRÓXIMO ARTIGO: DESAFIOS ATUAIS PARA O CULTO CRISTÃO (I): Existencialismo - Ênfase nas Emoções.
  



            

terça-feira, 13 de outubro de 2015

O CULTO NA HISTÓRIA DA IGREJA (III)

O CULTO NA REFORMA PROTESTANTE

A Reforma Protestante, no século XVI, foi uma resposta  à liturgia da Idade Média. Em certo sentido, o escopo principal dessa nova fase gravitou em torno de questões litúrgicas. Concordamos com o rev. Paulo Anglada, quando afirmou que “duas questões foram de suma importância na Reforma Protestante do século XVI: o culto e a doutrina (e nessa ordem)”.(1) Calvino também pensava assim. Num tratado sobre a necessidade de reforma na Igreja, escrito em 1543, ele enfatiza: “... primeiro, o modo como Deus é cultuado devidamente; e, segundo, a fonte da qual a salvação pode ser obtida. Quando se perde de vista estas coisas, embora possamos nos gloriar no nome de cristãos, nosso profissão de fé é vazia e vã”.(2)

            A Reforma do século XVI “foi o maior evento, ou série de eventos, desde o encerramento da cânon das Escrituras”(3). O filósofo alemão Hegel referiu-se à Reforma como “o sol que a tudo ilumina e que sucede aquela aurora do final da idade média”.

            Os reformadores examinaram os precedentes da Igreja, quando procuraram a maneira correta de cultuar a Deus. Eles não inovaram, simplesmente olharam para o passado. No ato de olharem para trás descobriram a adoração na igreja primitiva. Formulada pelos pais apostólicos. Zuinglio descobriu a riqueza na obra de Agostinho, Cirilo de Alexandria, Gregório de Nazianzo, Gregório de Nissa, Jerônimo e Orígenes. Essa descoberta fê-lo defender a primazia da Escritura e sua rejeição do sacrifício da missa.

            O reformador Ecolampadio catalogou as obras de Jerônimo e editou os textos de Crisóstomos. Martin Bucer possuía um conhecimento substancioso de literatura pastoral da Igreja Primitiva. Ele abraçou a escola exegética de Alexandria e obteve as edições de Erasmo dos textos dos teólogos da Igreja Primitiva.

            Calvino chegou a produzir um livro cujo título era: “As Formas de Orações Segundo o Costume da Igreja Antiga”. Ele declarou que a liturgia reformada deve se coadunar à prática da Igreja Primitiva. Tomou por base a prática cúltica formulada por Gregório, Basílio, Crisóstomo, Agostinho, Ambrósio e Cipriano, e rejeitou a forma de culto medieval que, para ele, estava longe das práticas da Igreja Patrística.

            Como consequência desse descobrimento patrístico o culto voltou a simplicidade original:
Os dirigentes do culto da igreja antiga se opunham ao culto suntuoso. Alguns chegaram mesmo a proibir a pintura de imagens de Cristo e de santos nas paredes dos templos. Clamaram contra a negação do cálice aos fiéis, a elaboração de leis para o jejum e a exigência de celibato aos sacerdotes. Os reformadores também se opuseram a tais costumes. Mas a área mais importante em que os reformadores examinaram a história em busca de orientação foi a litúrgica. Tanto a Igreja Primitiva como os reformadores mostraram um interesse primário pela proclamação da Palavra, pela oração por iluminação, pela invocação, pela oração de confissão, pela oração de intercessão e pela celebração da Ceia do Senhor.4
           

Vejamos os pontos principais do culto reformado.

A PRIMAZIA DA PALAVRA

            Os reformadores entendiam a Palavra de Deus como o centro do culto a Deus. João Calvino considerou a pregação da palavra como a parte principal do culto, e, em Genebra, as três paróquias realizavam quinze cultos semanalmente, todos com sermões.
            
          Martin Bucer sustentava que a Bíblia circunvolve a Palavra de Deus, e somente quando a Palavra é dirigida à Igreja e a Igreja apresenta a sua resposta, o verdadeiro culto acontece.
           
            Zuínglio, em Zurique, considerou a Palavra pregada como o ápice do culto. Sustenta ele que as orações, os lecionários, os responsos, os credos e os mandamentos são “simplesmente a ida da congregação para a Palavra e, depois, seu retorno da Palavra e saída para a vida com a Palavra”.  Ele entendeu que a pregação da Palavra estava relacionada diretamente com a salvação.
           
            Martinho Lutero acreditava que a Palavra pregada é revelação com as próprias Escrituras; isso porque ele observou que o Evangelho, originalmente, não era um livro, mais sermões, isto é, testemunho da fé apostólica.

            A Reforma foi o maior reavivamento da Pregação na história da Igreja cristã. Deus “usa o ministério de um homem para declarar publicamente a sua vontade a nós pela sua boca”, diz Calvino, “como um tipo de trabalho delegado, não transferindo a eles sua prerrogativa e honra, mas somente para que, através de suas bocas, ele possa fazer sua própria obra – assim como um trabalhador usa uma ferramenta para fazer o seu trabalho”.(5)

O discurso reformado apresenta o sermão como sacramento. “A verdade é que o ramo calvinista de tradição reformada e os documentos confessionais da tradição como um todo mostra uma consciência intensamente sacramental, mas do que acontece nas tradições romanas e anglicanas. Parte desse “mais” diz respeito ao sermão. Mais do que quaisquer tradições da cristandade, as da igreja da reforma – tanto a igreja reformada como a igreja luterana – tem enfatizado que, através da proclamação da igreja, Deus age graciosamente com o seu povo”.(6)

            Na liturgia da Reforma Deus fala soberanamente através do sermão pregado pelo ministro. Daí a relevância da pregação para os reformadores.

O LUGAR DOS SACRAMENTOS

         Em qualquer ordem de culto devem existir, para os reformadores, sempre três elementos: a pregação da Palavra, as orações e o sacramento da Ceia do Senhor. É bem verdade que o pensamento de Zuínglio era diferente dos demais reformadores.

            A Ceia do Senhor para Calvino não era um simples memorial, como atestava Zuínglio. Para ele a eucaristia era um profundo meio de graça – Deus atua a nosso favor. Participar da ceia é entrar na esfera da atuação de Deus, e não apenas da presença de Deus. Só nos resta a convicção de que temos de apossarmos da ação de Deus em fé e gratidão, através da obra do Espírito.

            No “sagrado ministério da Ceia”, diz Calvino, Deus “cumpre interiormente aquilo que ele mostra exteriormente”(7). Em outro loci ele diz que quando “recebemos o sacramento em fé, segundo a ordenação do Senhor, nós somos feitos verdadeiramente participantes da própria substância do corpo e do sangue de Jesus Cristo. Como isso é feito alguns podem deduzir melhor e explicar mais claramente do que outros. Seja como for, por um lado, para excluir todas as fantasias carnais, devemos elevar nosso coração aos céus, não pensando que nosso Senhor Jesus se rebaixa tanto a ponto de ser encerrado em alguns elementos corruptíveis; e, por outro lado, para não prejudicar a eficácia desta sagrada ordenação, devemos sustentar que ela é efetivada pelo poder secreto e miraculoso de Deus, e que o Espírito de Deus é o elo de participação espiritual”(8).

            Essa é a visão eucarística engendrada pelos reformadores no seu período histórico.


PARTICIPAÇÃO DO POVO

         A realização do culto na língua do povo foi uma tentativa de incluir a comunidade na adoração - a igreja na experiência de cultuar a Deus. Calvino asseverava que os adoradores deviam cultuar de uma forma inteligente. Para tal haveria uma necessidade de uma total compreensão da linguagem que estava sendo usada. Os fiéis tinham de ser espiritualmente alimentados para exercer seus direitos e, na medida do possível, entender e participar no canto e nas orações faladas durante o culto.

            Um ponto importante na participação do povo no culto foi a recuperação dos salmos na liturgia. Os reformadores procuraram recuperar os salmos e outros textos da Escritura – Calvino, através do canto metrificado, e Zuinglio, através de leitura de antífona.

            É bom destacar que os reformadores sustentavam que a música tinha de conduzir o texto aos adoradores e não distrai-los.

            À princípio, quando Calvino chegou em Genebra restringiu a música. Como Zuinglio, Calvino não tinha, inicialmente, música no culto. Mas, depois de visitar Estransburgo, colocou vários salmos nas métricas francesas de Mateus Greitu e Wolfgang Dachstein. É interessante perceber que essa alternativa seria para substituir as “frias melodias” de Genebra.

            Michael Horton observa que “a tradição reformada mais moldada pela influência de João Calvino produziu também uma rica tradição artística. Não só o Barroco Holandês foi um tributo à sua influência, como também a tradição de cânticos dos Salmos, hoje em dia muito esquecida, que foi popularizada durante o seu ministério em Genebra. Criança de escola na França cantavam os Salmos nos pátios onde brincavam (até que o mestre de escola as mandasse parar) e estes hinos majestosos foram cantados em lugares longínquos como na Hungria, Polônia, Escócia e Itália durante a Reforma. Embora Calvino admoestasse contra colocar a Igreja de volta sob as leis cerimonias de Israel, que foram apenas sombra do reino futuro e passaram com a vinda de cristo, ele, não obstante, encorajou o desenvolvimento de sociedades musicais na comunidade. Para o cântico dos Salmos sagrados nas igrejas, ele empregou o poeta mais famoso da renascença francesa, Clement Marot (1497-1544) para escrever o texto e compor música com a assistência de Louis bourgeois.(9)

            Toda essa moldura musical tinha uma finalidade básica: o serviço prestado pela congregação - a participação do povo no culto. Não havia a necessidade do coro. Os salmos tinham de ser cantados em uníssonos e sem acompanhamento instrumental.  

            Podemos resumir o ensino dos reformadores em relação ao culto, sobretudo Calvino, em quatro assertivas:

a)      A Integridade Bíblica. Eles insistiam no fato de que toda a prática deve ter sustentação no ensino bíblico.
b)      Inteligibilidade Teológica. O culto não deve apenas estar correto, mas deve também ser compreensível.
c)      Edificação. A prova concreta a que está sujeito o culto é a do crescimento em amor, confiança e lealdade para com Deus e para com o próximo.
d)      Simplicidade. O culto deve ser simples. Todos os movimentos, atos e palavra desnecessários são eliminados. As palavras, atos e outros acessórios do culto devem, acima de tudo, ser apropriados à verdade que comunica ou expressam.

Em relação a uma ordem litúrgica reformada não há unanimidade entre os reformadores. Lutero, Farel, Zuinglio, entre outros, formularam a sua própria ordem de culto. Devido a nossa herança calvinista, me proponho a apresentar a ordem litúrgica de Calvino. Ei-la:

- Convite à Adoração: (Leita Bíblica conclamando ao Culto Público)
- Oração de Confissão de Pecados
- Sentença Bíblica de Absolvição
- Decálogo (1ª parte)
- Oração
- Decálogo (2ª parte)
- Cântico de Salmo
- Oração por iluminação
- Leitura Bíblia e entrega do sermão
- Grande Oração (pastoral) e paráfrase da oração do Senhor
- Recitação do Credo Apostólico
- Preparação do Pão e Vinho
- Oração para a recepção da ceia (consagração), finalizando com a oração do Senhor
- Instituição da Santa Ceia (leitura bíblica)
- Exortação
- Distribuição dos elementos
- Cântico do Salmo
- Oração de Agradecimento
- Nunc Dimittis
- Bênção Araônica


            Aprendemos, historicamente, com os reformadores, que o culto cristão deve celebrar frequentemente a Ceia do senhor, deve haver mais leituras da Palavra de Deus, uma renovada ênfase no sermão expositivo, oração longa de intercessão (oração pastoral) após a proclamação da Palavra e do cântico de salmos metrificados.


Rev, Naziaseno Cordeiro Torres

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quarta-feira, 30 de setembro de 2015

O CULTO NA HISTÓRIA DA IGREJA (II)

NA IDADE MÉDIA

        Vimos, no artigo passado, como o culto cristão, de certo modo, foi corrompido pelo paganismo. Ao longo do século V ao XVI a adoração, como um todo, foi alterada radical e completamente. A estrutura litúrgica formulada por Justino e Hipólito foi gradativamente modificada.

O primeiro fato marcante do culto medieval é a sua enfática concentração na eucaristia. Na liturgia de Justino havia um equilíbrio entre a palavra e o sacramento. Entretanto, já no início da idade média o ministério da Palavra tinha perdido o seu significado, e era entendido, simplesmente, como uma preparação para a eucaristia. Tomás de Aquino, amente teológica católica medieval, expressa no seu tratado que a celebração desse mistério da eucaristia é precedida por uma certa preparação “a fim de que possamos realizar dignamente aquele que vem depois”(1). De uma forma semelhante, muitos escritores católicos, até nos dias de hoje, falam daquilo que precede a eucaristia na liturgia como pré-missa. Robert Hasting Nichols, em História da Igreja Cristã, afirma: “A missa tornou-se o elemento central do culto. A ceia do Senhor era agora conhecida pelo nome de missa. Este sacramento era considerado um sacrifício continuamente oferecido a Deus pelos pecados do mundo”(2). Nichols, ainda, salienta que “firmava-se cada vez mais a crença de que o pão era verdadeira carne e o vinho, o verdadeiro sangue do Senhor”(3). É bem verdade que, no início da idade média, a crença não tivesse sido definida e declarada pela Igreja.

Com a ênfase completamente dirigida para a eucaristia, o serviço da Palavra foi frequentemente truncado pela omissão do sermão. Era uma raridade que um pároco pregasse, pois a maioria do clero era bastante ignorante para pregar a Palavra. Com o surgimento de frades dominicanos e franciscanos, dedicaram-se muito a essa obra tão negligenciada por parte dos sacerdotes.

Deve-se reconhecer, ainda, que o povo geralmente não participava de toda a estrutura do culto.  Todas as partes eram celebradas em latim; assim sendo, poucas pessoas entendiam o que ouviam na Igreja. O papel do povo era o de espectadores. Bem diferente era a compreensão que Justino, que se refere ao povo como sujeito das orações: Nós oramos, Nós comemos, nós nos cumprimentamos uns aos outros, nós dizemos: Amém. Contudo, “gradualmente, a ideia desenvolvida foi de que a liturgia era alguma coisa que o clero fazia em favor do povo”(4). O grande estudioso litúrgico católico J. A. Jungmann, afirmou: “O povo era religiosos e vinha aos serviços. Contudo, mesmo quando estava presente, a liturgia era para o clero. O papel dos leigos era, para todos os efeitos, o de espectadores”(5).’

Um fato marcante na liturgia medieval é que existia uma linha divisória entre o clero e o leigo. Desta maneira é que se derivou uma distinção: a clericalização da Igreja. Seu aspecto mais óbvio foi a introdução de ofícios eclesiásticos com diferenciação de oficiais eclesiásticos com distinção hierárquica de autoridade entre eles e com um laicato na base. A ideia colocada, paulatinamente, foi que a liturgia era algo que o clero fazia em favor do povo.

A teologia sacramental postulada na idade média deve, também, ser alvo de nossa análise. Os sacramentos comunicavam graça, contudo “a graça veio a ser considerada menos como a atitude de Deus para conosco e mais como alguma coisa que tornava infusa na pessoa”.(6) O grande problema nessa teologia é o conceito de graça. Tomás de Aquino se refere à graça como uma “qualidade da alma” da pessoa humana.(7) Em um outro loci ele se refere à graça como o “princípio das obras meritórias por intermédio da virtude”.(8) O espírito do homem, enfraquecido e devastado pelo pecado é restaurado e fortalecido por uma infusão da graça. Como consequência direta desse erro a Igreja Medieval ensinou que o pão e o vinho, sob a consagração feita pelo sacerdote, são transformados em sua substância no corpo e no sangue de Cristo, de maneira que Cristo se torna corporalmente presente diante de nós.

O ministrante da eucaristia era o sacerdote(9). A Igreja insistia, de maneira uniforme, que as bênçãos da eucaristia no fiel não depende das condições espirituais do sacerdote. Os sacramentos não são eficazes através da atividade daquele que os executam (ex opere operantis); eles são eficazes através do ato executado (ex opere operato). Criou-se, então, uma dicotomia entre ortodoxia e ortopraxia. Se a pessoa ordenada realmente realiza ou não o sacramento é algo que não depende de sua piedade, mas do fato de que ela tenha a intenção de fazer aquilo que a Igreja faz – juntamente com a condição de que o requisito matéria e o requisito forma (palavra) estejam presentes.

Os medievais não deram atenção, imediatamente, à presença ativa do Espírito Santo. A epiclesis do Espírito, tão presente na oração de Hipólito, desapareceu por completa na missa. A epiclesis era um apelo para que o Espírito fizesse com que os elementos se tornassem efetiva. Diz ela: “E nós te suplicamos que tu envies o teu Espírito Santo sobre a oferenda de tua santa igreja, para consagrar em unidade todos aqueles que a receberem. Que eles sejam cheios do santo Espírito que fortalece a sua fé na verdade. Que eles sejam assim capacitados a te louvar e a te glorificar através de teu Filho Jesus Cristo”(10). Assim sendo, o ministério eucarístico era vazio e insignificante sem a ação do Espírito de Cristo.

Além desses profundos desvios no culto no período medieval, podemos ainda citar:

a)      O culto das relíquias: Muitos objetos tornaram-se sagradas na mentalidade medieval. Ossos dos apóstolos, cadeias com que Pedro foi algemado, por exemplo, era relíquias que se criam tinham o poder de operar milagres(11).
b)      As peregrinações a locais “sagrados”: Havia, na época, o costume de viagens rumo a locais ditos sagrados. Tais viagens, afirmava-se, conferir aos peregrinos as graças divinas.(12)
c)       O culto dos santos e a mariolatria: Deus não era o único digno de receber adoração. Entre os santos, quem ocupava mais espaço, era a Virgem Maria. Diz Nichols que “o ano eclesiástico se encheu de grandes festas em sua honra. Faziam-lhe orações contínuas por sua intercessão junto ao Pai”.(13) Recebiam a devoção, os apóstolos, mártires, monges e ouros santos homens e mulheres. Consequentemente crescia o calendário eclesiástico.(14)
d)      Confissão, penitência, absolvição. O homem religioso medieval devia se confessar, pelo menos, uma vez por ano. A penitência era o resultado pelo pecado do infrator, que variava de acordo com o grau da falta. Sacrifícios como, por exemplo, jejum, flagelações, peregrinações, rezas... Essas penitências, uma vez cumpridas, eram aceitas pela igreja como prova de verdadeiro arrependimento. A absolvição dos pecados era pronunciada pelos sacerdotes.(15) Nichols salienta que “no meio da idade média tal pronunciamento era geralmente considerado como perdão divino, concedido pelo pecador. Depois prevaleceu a ideia de que a Igreja, por seus sacerdotes, podiam não somente declarar, mas, na realidade, conceder judicialmente o perdão. A igreja, pensava-se, possuía o perdão divino e podia concedê-lo aos pecadores”.(16)
e)      O Purgatório: A Igreja medieval ensinou que havia um estado de sofrimento purificador, pelo qual o pecador deve passar antes de entrar no gozo eterno.(17)
f)       As Indulgências: A Igreja  ensinava que tinha o poder de diminuir as penas do purgatório daquelas pessoas que, enquanto estando na terra, satisfizessem as suas exigências. Essa redução de penas do purgatório era chamada indulgências. Vale salientar que tal absurdo foi a “gota d ‘água”  para o nascimento de uma nova reflexão teológica-exegética: A Reforma Protestante, no século XVI.(18)

Nicholas Wolterstorff nos dá uma visão panorâmica do período medieval:


“Em síntese, a minha sugestão é que a liturgia medieval do ocidente era uma liturgia em que, num grau extraordinário, se tinha perdido de vista a ação de Deus. As ações eram humanas. Os sacerdotes dirigiam-se a Deus. Os sacerdotes provocavam a presença física de Cristo, ainda que estática. Os leigos adoravam a Cristo sob as aparências de pão e vinho. A recepção do pão consagrado das mãos do sacerdote causava uma infusão da graça aos comungantes. Mas onde, em tudo isso, estava Deus, o Deus vivo e ativo? O pão infundia a graça nele significada. A consagração pelo sacerdote efetuava a presença física de Cristo. Mas Deus, como agente, não estava em parte alguma à vista. E qual era o ponto decisivo em tudo isso?”(19)

Rev. Naziaseno Cordeiro Torres

(1) Summa Theologica, III, Q.83, art 4
(2) A palavra "missa" vem do latim. Esse é o nome comumente dado à eucaristia, por parte do catolicismo ocidental. A derivação do nome é incerta, mas os eruditos supões que vem das sentença latina "it, missa est" ("Ide, estás despedidos") que o diácono pronuncia no fim da cerimônia.
(3)  Nicholas, Robert, História da Igreja Cristã, pp. 75-76.
(4) Wolterstorff, Nichols. Grandes Tema da Tradição Reformada, p. 241.
(5) Idem. Ibid. p. 242.
(6) Idem. Ibid. p. 242
(7) Summa Theológica, II/I, Q. 110, arts. 2-4.
(8)   Summa Theológica, II/I, Q. 110, arts. 1
(9) Em português "sacerdote" vem do latim "sacer", "sagrado", "consagrado".
(10) Nicholas Wolterstorff, Grandes Temas da Tradição Reformada, p. 240
(11) Nichols, Robert Hasting, História da Igreja Cristã, p. 85.
(12) Idem, p. 84
(13) Nichols, Robert Hasting, História da Igreja Cristã, p. 75.
(14) Idem, p. 84
(15) Idem, p. 115.
(16) Idem. p. 104
(17) Idem. p. 116
(18) Idem, Ibid
(19) Nicholas Wolterstorff, Grandes Temas da Tradição Reformada, p. 249.

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