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quarta-feira, 30 de setembro de 2015

O CULTO NA HISTÓRIA DA IGREJA (II)

NA IDADE MÉDIA

        Vimos, no artigo passado, como o culto cristão, de certo modo, foi corrompido pelo paganismo. Ao longo do século V ao XVI a adoração, como um todo, foi alterada radical e completamente. A estrutura litúrgica formulada por Justino e Hipólito foi gradativamente modificada.

O primeiro fato marcante do culto medieval é a sua enfática concentração na eucaristia. Na liturgia de Justino havia um equilíbrio entre a palavra e o sacramento. Entretanto, já no início da idade média o ministério da Palavra tinha perdido o seu significado, e era entendido, simplesmente, como uma preparação para a eucaristia. Tomás de Aquino, amente teológica católica medieval, expressa no seu tratado que a celebração desse mistério da eucaristia é precedida por uma certa preparação “a fim de que possamos realizar dignamente aquele que vem depois”(1). De uma forma semelhante, muitos escritores católicos, até nos dias de hoje, falam daquilo que precede a eucaristia na liturgia como pré-missa. Robert Hasting Nichols, em História da Igreja Cristã, afirma: “A missa tornou-se o elemento central do culto. A ceia do Senhor era agora conhecida pelo nome de missa. Este sacramento era considerado um sacrifício continuamente oferecido a Deus pelos pecados do mundo”(2). Nichols, ainda, salienta que “firmava-se cada vez mais a crença de que o pão era verdadeira carne e o vinho, o verdadeiro sangue do Senhor”(3). É bem verdade que, no início da idade média, a crença não tivesse sido definida e declarada pela Igreja.

Com a ênfase completamente dirigida para a eucaristia, o serviço da Palavra foi frequentemente truncado pela omissão do sermão. Era uma raridade que um pároco pregasse, pois a maioria do clero era bastante ignorante para pregar a Palavra. Com o surgimento de frades dominicanos e franciscanos, dedicaram-se muito a essa obra tão negligenciada por parte dos sacerdotes.

Deve-se reconhecer, ainda, que o povo geralmente não participava de toda a estrutura do culto.  Todas as partes eram celebradas em latim; assim sendo, poucas pessoas entendiam o que ouviam na Igreja. O papel do povo era o de espectadores. Bem diferente era a compreensão que Justino, que se refere ao povo como sujeito das orações: Nós oramos, Nós comemos, nós nos cumprimentamos uns aos outros, nós dizemos: Amém. Contudo, “gradualmente, a ideia desenvolvida foi de que a liturgia era alguma coisa que o clero fazia em favor do povo”(4). O grande estudioso litúrgico católico J. A. Jungmann, afirmou: “O povo era religiosos e vinha aos serviços. Contudo, mesmo quando estava presente, a liturgia era para o clero. O papel dos leigos era, para todos os efeitos, o de espectadores”(5).’

Um fato marcante na liturgia medieval é que existia uma linha divisória entre o clero e o leigo. Desta maneira é que se derivou uma distinção: a clericalização da Igreja. Seu aspecto mais óbvio foi a introdução de ofícios eclesiásticos com diferenciação de oficiais eclesiásticos com distinção hierárquica de autoridade entre eles e com um laicato na base. A ideia colocada, paulatinamente, foi que a liturgia era algo que o clero fazia em favor do povo.

A teologia sacramental postulada na idade média deve, também, ser alvo de nossa análise. Os sacramentos comunicavam graça, contudo “a graça veio a ser considerada menos como a atitude de Deus para conosco e mais como alguma coisa que tornava infusa na pessoa”.(6) O grande problema nessa teologia é o conceito de graça. Tomás de Aquino se refere à graça como uma “qualidade da alma” da pessoa humana.(7) Em um outro loci ele se refere à graça como o “princípio das obras meritórias por intermédio da virtude”.(8) O espírito do homem, enfraquecido e devastado pelo pecado é restaurado e fortalecido por uma infusão da graça. Como consequência direta desse erro a Igreja Medieval ensinou que o pão e o vinho, sob a consagração feita pelo sacerdote, são transformados em sua substância no corpo e no sangue de Cristo, de maneira que Cristo se torna corporalmente presente diante de nós.

O ministrante da eucaristia era o sacerdote(9). A Igreja insistia, de maneira uniforme, que as bênçãos da eucaristia no fiel não depende das condições espirituais do sacerdote. Os sacramentos não são eficazes através da atividade daquele que os executam (ex opere operantis); eles são eficazes através do ato executado (ex opere operato). Criou-se, então, uma dicotomia entre ortodoxia e ortopraxia. Se a pessoa ordenada realmente realiza ou não o sacramento é algo que não depende de sua piedade, mas do fato de que ela tenha a intenção de fazer aquilo que a Igreja faz – juntamente com a condição de que o requisito matéria e o requisito forma (palavra) estejam presentes.

Os medievais não deram atenção, imediatamente, à presença ativa do Espírito Santo. A epiclesis do Espírito, tão presente na oração de Hipólito, desapareceu por completa na missa. A epiclesis era um apelo para que o Espírito fizesse com que os elementos se tornassem efetiva. Diz ela: “E nós te suplicamos que tu envies o teu Espírito Santo sobre a oferenda de tua santa igreja, para consagrar em unidade todos aqueles que a receberem. Que eles sejam cheios do santo Espírito que fortalece a sua fé na verdade. Que eles sejam assim capacitados a te louvar e a te glorificar através de teu Filho Jesus Cristo”(10). Assim sendo, o ministério eucarístico era vazio e insignificante sem a ação do Espírito de Cristo.

Além desses profundos desvios no culto no período medieval, podemos ainda citar:

a)      O culto das relíquias: Muitos objetos tornaram-se sagradas na mentalidade medieval. Ossos dos apóstolos, cadeias com que Pedro foi algemado, por exemplo, era relíquias que se criam tinham o poder de operar milagres(11).
b)      As peregrinações a locais “sagrados”: Havia, na época, o costume de viagens rumo a locais ditos sagrados. Tais viagens, afirmava-se, conferir aos peregrinos as graças divinas.(12)
c)       O culto dos santos e a mariolatria: Deus não era o único digno de receber adoração. Entre os santos, quem ocupava mais espaço, era a Virgem Maria. Diz Nichols que “o ano eclesiástico se encheu de grandes festas em sua honra. Faziam-lhe orações contínuas por sua intercessão junto ao Pai”.(13) Recebiam a devoção, os apóstolos, mártires, monges e ouros santos homens e mulheres. Consequentemente crescia o calendário eclesiástico.(14)
d)      Confissão, penitência, absolvição. O homem religioso medieval devia se confessar, pelo menos, uma vez por ano. A penitência era o resultado pelo pecado do infrator, que variava de acordo com o grau da falta. Sacrifícios como, por exemplo, jejum, flagelações, peregrinações, rezas... Essas penitências, uma vez cumpridas, eram aceitas pela igreja como prova de verdadeiro arrependimento. A absolvição dos pecados era pronunciada pelos sacerdotes.(15) Nichols salienta que “no meio da idade média tal pronunciamento era geralmente considerado como perdão divino, concedido pelo pecador. Depois prevaleceu a ideia de que a Igreja, por seus sacerdotes, podiam não somente declarar, mas, na realidade, conceder judicialmente o perdão. A igreja, pensava-se, possuía o perdão divino e podia concedê-lo aos pecadores”.(16)
e)      O Purgatório: A Igreja medieval ensinou que havia um estado de sofrimento purificador, pelo qual o pecador deve passar antes de entrar no gozo eterno.(17)
f)       As Indulgências: A Igreja  ensinava que tinha o poder de diminuir as penas do purgatório daquelas pessoas que, enquanto estando na terra, satisfizessem as suas exigências. Essa redução de penas do purgatório era chamada indulgências. Vale salientar que tal absurdo foi a “gota d ‘água”  para o nascimento de uma nova reflexão teológica-exegética: A Reforma Protestante, no século XVI.(18)

Nicholas Wolterstorff nos dá uma visão panorâmica do período medieval:


“Em síntese, a minha sugestão é que a liturgia medieval do ocidente era uma liturgia em que, num grau extraordinário, se tinha perdido de vista a ação de Deus. As ações eram humanas. Os sacerdotes dirigiam-se a Deus. Os sacerdotes provocavam a presença física de Cristo, ainda que estática. Os leigos adoravam a Cristo sob as aparências de pão e vinho. A recepção do pão consagrado das mãos do sacerdote causava uma infusão da graça aos comungantes. Mas onde, em tudo isso, estava Deus, o Deus vivo e ativo? O pão infundia a graça nele significada. A consagração pelo sacerdote efetuava a presença física de Cristo. Mas Deus, como agente, não estava em parte alguma à vista. E qual era o ponto decisivo em tudo isso?”(19)

Rev. Naziaseno Cordeiro Torres

(1) Summa Theologica, III, Q.83, art 4
(2) A palavra "missa" vem do latim. Esse é o nome comumente dado à eucaristia, por parte do catolicismo ocidental. A derivação do nome é incerta, mas os eruditos supões que vem das sentença latina "it, missa est" ("Ide, estás despedidos") que o diácono pronuncia no fim da cerimônia.
(3)  Nicholas, Robert, História da Igreja Cristã, pp. 75-76.
(4) Wolterstorff, Nichols. Grandes Tema da Tradição Reformada, p. 241.
(5) Idem. Ibid. p. 242.
(6) Idem. Ibid. p. 242
(7) Summa Theológica, II/I, Q. 110, arts. 2-4.
(8)   Summa Theológica, II/I, Q. 110, arts. 1
(9) Em português "sacerdote" vem do latim "sacer", "sagrado", "consagrado".
(10) Nicholas Wolterstorff, Grandes Temas da Tradição Reformada, p. 240
(11) Nichols, Robert Hasting, História da Igreja Cristã, p. 85.
(12) Idem, p. 84
(13) Nichols, Robert Hasting, História da Igreja Cristã, p. 75.
(14) Idem, p. 84
(15) Idem, p. 115.
(16) Idem. p. 104
(17) Idem. p. 116
(18) Idem, Ibid
(19) Nicholas Wolterstorff, Grandes Temas da Tradição Reformada, p. 249.

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